Era uma vez um homem que nasceu em um mundo normal e viveu
uma vida normal (ao menos até o final dela). Nascido no complexo subterrâneo XX-I,
ele sempre viveu bem. Na sua infância, assistiu televisão e estudou. Na
adolescência, conheceu uma garota que o suportava e aceitou ser sua namorada.
Quando se tornou um adulto, mudou-se para um cubículo habitacional e conseguiu
um bom emprego processando dados.
Sua vida era perfeita, até o final daquele
dia. Ele acordou com o despertador e se vestiu rapidamente. Apreciou as paredes
prateadas de seu cubículo enquanto bebia um copo de leite e comia um pedaço de
pão. Tomou banho e saiu do seu cubículo. Atravessou o longo corredor (também
prateado) do quarto andar. Depois de descer as escadas, recolheu a
correspondência e foi pegar o transporte. Chegou ao trabalho, cumprimentou os
colegas e começou a digitar em sua repartição. Ao meio-dia comeu um lanche e
conversou com os colegas sobre o trabalho e sobre outros colegas.
No fim de tarde, pegou um transporte e voltou para o seu
cubículo. Tomou banho, saiu e entrou em outro transporte. Desceu em um centro
de alimentação. Junto de sua noiva (com quem começou a namorar na adolescência)
desfrutou de uma refeição n° 7, como fazia todas as semanas. Enquanto comiam,
os dois conversaram sobre trabalho, colegas de trabalho, família e familiares. Depois
disso, os dois tomaram um transporte até um centro de romantismo e alugaram um
cubículo para casais. Lá, se esfregaram durante algum tempo, como também faziam
todas as semanas. Depois disso ambos tomaram transportes para seus respectivos
cubículos.
Foi algum tempo depois de chegar que o homem descobriu que
sua rotina estava em perigo. Logo antes de ir dormir, o homem se lembrou de que
não tinha aberto a correspondência. Depois de passar os olhos rapidamente por
algumas contas, o homem encontrou uma carta do conselho diretor do complexo.
Eles iriam construir uma fábrica de acessórios automotivos no mesmo local em
que seu centro habitacional estava. Ele teria que se mudar. Nervoso com a
notícia, o homem foi dormir.
Ao longo das próximas semanas o
homem teve que tomar várias providências. O dinheiro da indenização não foi
suficiente para comprar outro cubículo habitacional. Foi forçado a ir morar em
um quarto na parte antiga do complexo. O prédio não obedecia aos novos padrões.
Ao invés do belo prateado que dominava a arquitetura contemporânea, ele era
amarelo claro e tinha muitos detalhes em madeira. O homem se surpreendeu com a
falta de metal e plástico naquele lugar. Não era à toa que o quarto era absurdamente
barato.
Exceto pelo que aconteceria mais
tarde, aquele dia foi normal. O homem acordara na mesma hora de sempre,
trabalhara como sempre e conversara como sempre sobre os assuntos de sempre. No
entanto, nessa primeira noite lá, teve uma surpresa. Encontrou uma planta perto
de sua cama. Era uma planta relativamente pequena, adequada para um quarto de
aluguel, mas ela impressionava com o tamanho e cor de suas enormes folhas. Era
quase impossível ver o vaso que sustentava aquela vasta cabeleira verde.
Perplexo, o homem foi questionar a dona do prédio, que não pareceu gostar muito
do assunto. Descobriu que aquela planta estava no quarto há muito tempo e que
os últimos inquilinos pareciam gostar muito dela.
O homem decidiu deixar de lado a
planta e as caixas da mudança. Foi dormir.
Mal sabia ele que aquela não era uma
planta comum. No centro da densa camada de folhas, vivia uma pequena fada. Bem
pequena mesmo, muito menor que de um polegar. O corpo da criaturinha era
coberto por diferentes tons de verde e seus cabelos emolduravam um rostinho
perfeito que abrigava dois olhos absolutamente negros.
Quando o homem adormeceu, a fada
bateu suas pequenas asas translúcidas e foi conhecer o novo companheiro. Ela estava
animada. Esteve muito entediada desde que levaram seu último companheiro dali.
Existem muitos tipos de fada. Essa em particular (assim como suas irmãs) estava
presa à planta em que nascera. Depois que ela foi retirada do bosque e vendida,
a fada foi obrigada a acompanhá-la, deixando um rastro nos corações daqueles
que cruzaram seu caminho. Apesar de tímida, a fada gostava das pessoas e desde
que chegou naquele quarto ela sempre brincara com seus habitantes (e sempre
lamentara quando eles eram levados embora).
A criaturinha pousou na testa do
homem e começou a explorar o novo terreno. Caminhou sobre os vincos na testa,
dançou sobre os olhos e passou horas brincando no seu cabelo. Ela ficou feliz
com o novo companheiro. O antigo era careca e ela já estava enjoada de patinar
naquela cabeça. Achou muito mais divertido agarrar aqueles cabelos.
Naquela noite o homem teve um sonho
diferente de qualquer sonho que já tinha tido antes. Sonhou com um bosque.
Sonhou com árvores. Sonhou que molhava as pontas dos pés em um lago cristalino.
Também sonhou com um mulher de pele esverdeada que lhe afagava os cabelos.
Sonhou com beijos tão suaves quanto a brisa da noite.
O homem não acordou quando o
despertador tocou. Ele acordou horas mais tarde, quando algum outro inquilino derrubou
um objeto pesado no corredor. Ainda tentando se agarrar às últimas imagens
daquele sonho, o homem se virou e percebeu que estava atrasado. Vestiu-se apressadamente
e desceu as escadas correndo.
No caminho para o trabalho, o homem
percebeu que se sentia feliz. Começou a repassar os detalhes daquele sonho.
Quando chegou ao trabalho, continuou a pensar no sonho. Na hora do almoço,
tentou conversar com seus colegas sobre ele, mas não conseguiu. Sentiu-se tolo
falando sobre isso. Eles riram e rapidamente descartaram o assunto. Continuaram
falando sobre trabalho e outros colegas. Frustrado, ele voltou a trabalhar.
O homem preparou dois despertadores
naquela noite. Mais uma vez a pequena criatura saiu de sua toca assim que o
homem dormiu. Mais uma vez ele sonhou com árvores, água e beijos.
Naquela manhã o homem ficou triste quando os
despertadores tocaram e ele teve que se levantar, mas rapidamente a lembrança
do sonho fez com que ele se animasse. Alegremente ele desceu as escadas e foi
trabalhar. Mais uma vez ele tentou conversar com seus colegas sobre esse sonho,
mas o assunto foi rapidamente descartado como sendo uma excentricidade dele. O
homem não se importou muito com isso. Iria encontrar com sua noiva naquela
noite. Estava ansioso para ouvir o que
ela teria a dizer sobre aquele sonho.
O homem chegou ao centro de
alimentação antes da hora. Começou a ficar nervoso. Tentou se distrair com o
cardápio. Não conseguiu ler nada. Começou a planejar como iria contar a
história. Conforme planejava seu coração batia mais rápido. Não entendia bem
por que estava tão animado. Estava tendo dificuldade de ficar sentado.
Depois de algum tempo sua noiva
chegou. Ele a cumprimentou com mais entusiasmo do que de costume, o que
levantou alguma suspeita. Eles pediram o prato de sempre. Antes de contar sua
história, o homem teve que ouvir algumas reclamações de sua noiva sobre o
trabalho.
Então o homem contou de seu sonho.
Tentou descrever o melhor que pôde cada uma daquelas sensações maravilhosas. Falou
sobre como ficou tão feliz que não ouviu o despertador. Disse que de alguma
forma aquele sonho tinha despertado nele algo de novo e maravilhoso. Cometeu um
grande erro.
Na metade da narrativa o homem
começou a se arrepender de ter mencionado o assunto. A expressão de sua noiva
oscilava entre tédio e reprovação. Depois da narrativa ele foi obrigado a ouvir
um sermão sobre como tinha que levar seu trabalho a sério e não deixar ele ser
prejudicado por bobagens. Além disso, teve que convencê-la de que não estava fantasiando
com outras mulheres. Por fim, desculpou-se.
Pela primeira vez desde aquele
sonho, o homem se sentiu triste. Sentiu que existia entre ele e aquela mulher
uma distância que nunca poderia transpor. Sentiu que ela era uma estranha. Como
poderia explicar? Como ela não entendia a beleza do que dissera? Como não via
como ele estava se sentindo? Porque fez questão de fazer ele se sentir mal com
algo que era tão importante para ele?
Naquela noite, como de costume, ele
se esfregaram durante alguns minutos. O homem se sentiu um pouco enjoado, mas
achou melhor evitar mais uma briga. Cumpriu com sua obrigação.
Chegando em casa ele tomou banho e
se jogou na cama. Ficou pensando no jantar. Sentiu-se idiota. Adormeceu enquanto relembrava de seus erros.
Sonhou. Sentiu um alívio no peito.
Passeou por lugares que nunca tinha visto antes. Conversou com criaturas
antigas. Explorou uma longa caverna iluminada pela luz de milhares de bichinhos
voadores. No centro da caverna, encontrou novamente aquela mulher...
Acordou amaldiçoando os
despertadores. Juntou suas forças e foi trabalhar. Decidiu que não iria mais
falar sobre aqueles sonhos. Insistir nisso seria desgastante e inútil.
Nas semanas seguintes sua vida
voltou à rotina normal. Ele voltou a acordar no horário certo e a conversar
sobre os assuntos certos. Sua noiva pareceu esquecer-se das bobagens que ele
falara e a esfregação continuou como sempre (apesar de ter se tornado mais uma
obrigação do que qualquer outra coisa).
Passou a acordar todos os dias xingando
o despertador e tentando se agarrar nas últimas lembranças do sonho. Começou a
conversar menos com seus colegas. Decidiu se focar no trabalho para que o tempo
passasse mais rápido. Dormia assim que chegava em casa.
Perdeu o gosto pelo mundo desperto.
Começou a ficar incomodado com a vastidão cinza do complexo. Não conseguia mais
ter interesse no que as pessoas falavam. Começou a ter nojo da comida gordurosa
e artificial que era forçado a comer. Estava cercado de coisas sem vida.
Os sonhos se tornavam cada vez
melhores. Tinha a impressão de que conseguia ficar cada vez mais tempo naquele
mundo. Começou a perceber com mais clareza os detalhes que o cercavam. Passava
horas deitado em silencio ao lado da mulher verde. Sentiu que era amado.
Essa foi a sensação que mais o perturbou:
ser amado. A ideia tomou conta de sua mente. Começou a ter dificuldade para
trabalhar. Quando estava acordado, ficava fantasiando com aquela sensação.
Quando não fantasiava, ficava angustiado ao perceber que nunca a teria no mundo
desperto.
Passou muito tempo nessa vida de
sonhos e angústias. Um dia decidiu faltar ao trabalho. Passou a maior parte do
dia sonhando. Foi repreendido depois, mas não se arrependeu. A escapada se
tornou um hábito cada vez mais freqüente. Foi demitido.
Naquela manhã ele acordou se
sentindo muito feliz. Apesar de acordado, não sentiu nenhum sinal de angústia
se aproximando. Durante o dia ele visitou alguns estabelecimentos do complexo e
tomou algumas providências. À noite, abriu um frasco de soníferos. Engoliu
todos e foi se deitar. Sentiu que estava em paz.
A pequena fada lamentou quando mais
um de seus companheiros foi levado pelos homens vestidos de branco. A dona do
prédio abaixou mais uma vez o preço do quarto. A noiva do homem ficou
terrivelmente frustrada com o tempo que tinha jogado fora. A vida no complexo
continuou.